Lembro-me, que enquanto miúdo, vivia o futebol como momento de magia. E o futebol para mim era sinónimo de Benfica. Eu, como qualquer puto, sonhava em ser jogador de futebol. Eu não sonhava ser um jogador qualquer, sonhava ser um jogador do Benfica. Sonhava ser um Rui Costa, um Paneira, um Isaías, e às vezes um Neno ou um Sílvino, dependia do dia. A única regra era… o Benfica.
Quando era puto, amava o Benfica de uma forma pura e genuína. Eu tinha 10, 11, 12 ou 13 anos (e até bem mais cedo), e já sofria pelo Benfica. Lembro-me que, não raras vezes, quando o Benfica estava num jogo difícil, a vencer por 2-1 a 10 minutos do final, não conseguir ver mais esse jogo. Nesse momento, saía para a rua e vinha dar uns pontapés na bola. Não era sempre, mas era frequente em jogos importantes. Fazia-o como se isso se transportasse para dentro do campo, e aqueles pontapés fossem suficientes para ajudar o Benfica a ganhar o jogo. Lembro-me do 3-6 ao Sporting. Eu não vi o jogo todo, estava a ser demasiado frenético para mim. O Benfica estava a dar-me demasiado amor, e o meu coração de puto não aguentava com tanto amor. Eu sofria. Ao intervalo peguei na bicicleta e fui até cada da avó, que ainda ficava longe para um puto daquela idade, e como na volta era sempre a subir, mais tempo demorava. Eu sabia da importância do jogo, e só queria que aquilo acabasse depressa. O 4-4 com o Leverkussen foi outro, não consegui ver o jogo todo, tinha momentos que apenas ia espreitar. Via o jogo a espaços consoante o resultado. Lembro-me também de um jogo contra o Boavista, em que o Paulo Sousa (esse grandessíssimo filho de uma puta) teve de substituir, ou o Neno, ou o Silvino, que acabara de cometer pénalti e ser expulso. Não vi esses 10 ou 15 minutos. Fui para a rua dar uns pontapés na bola. Mas depois acabava o jogo, e descobria que o Benfica me amava também. Ele provava-o a cada vitória difícil. Aquilo era amor correspondido. Aquilo era paixão.
Para mim viver nos Açores é especial, mas crescer nos Açores foi muito mais especial. Estávamos isolados e por isso éramos especiais. Ainda somos. Naquele tempo não havia internet, só meia dúzia de pessoas tinham telefone, e eu estava reduzido à RTP Açores, à qual se juntou uns anos mais tarde a RTP 1. Dava 1 jogo por semana na TV, aliás, nem sei se tanto. Cresci a apenas ouvir muitos dos jogos do Benfica na Rádio e a imaginar as jogadas. Era em muitas ocasiões, quase literalmente, um amor cego. Falo disto porque estou convencido, mas se calhar enganado, que isso me torna num Benfiquista especial (acho que somos todos Benfiquistas especiais), um Benfiquista que aprendeu a imaginar e Endeusar o Benfica. E bem, porque o Benfica era isso mesmo, grandioso. Estou mesmo convencido que toda esta distância, e toda esta inacessibilidade ao Benfica por força geográfica e recuo tecnológico, fizeram do meu amor pelo clube, um amor especial. Como um emigrante, que vive o hino, a sua pátria, os costumes da sua terra, entre outras coisas ligadas às suas raízes, de uma forma muito mais apaixonada, muito mais sentida, e em suma, de uma forma muito mais... especial.
Tive, e tenho origens em famílias humildes, sou filho de um agricultor com a 4ªclasse e de uma trabalhadora do Estado sem grandes posses, como quase toda a gente que vivia nos Açores, e especialmente numa ilha pequena como a minha. Ir a Lisboa não era tão fácil como hoje, e se acham que agora as passagens são caras, nem imaginam na minha infância. Mas minha mãe, como trabalhadora do Estado, numa altura em que havia muito dinheiro público para torrar, tinha direito a uma viagem por ano a Lisboa para toda a família. Éramos uns privilegiados. Eu aos 6, 7 ou 8 anos pude conhecer o estádio da luz. Foi numa dessas viagens que vi o meu primeiro jogo ao vivo na antiga Luz. Eram mais de 100 mil nas bancadas. Foi num jogo das competições Europeias. Não me perguntem quem era o adversário, apenas me lembro que o Mats Magnussen marcou pelo menos um dos golos, e que ganhamos 2-1 acabando eliminados. Não me lembro ao pormenor das coisas, mas lembro-me da envolvência antes do jogo e de toda aquela excitação. Aquilo era especial. Só hoje percebo o que era. Aquilo era amor. Era o Benfica a amar-me.
Vivíamos tão arredados daquela realidade dos jogos ao vivo, mas com tanta paixão pelo Benfica e gosto pelo futebol em geral, que na mesma semana, o meu pai sabendo que o Belenenses jogava também ele para as competições Europeias, pegou em mim e levou-me para Belém. Ele só ficou a saber que o Belenenses jogava quase em cima da hora do jogo, e vivendo ele fora de Lisboa pouco habituado a grandes cidades, foi um filme até encontrar o estádio. Lisboa e arredores era um mundo para nós. Chegámos ao intervalo e não sei a quantos acabou o jogo, mas lembro-me de o Belenenses ser eliminado nos penaltis na baliza que ficava mais longe.
Todo aquele entusiasmo pelo futebol vinha apenas, e exclusivamente, do Amor ao Benfica. Do meu amor que estava a crescer, e do de meu pai que já existia, e que tinha crescido de uma forma ainda mais inacessível. Hoje não sinto mais todo aquele entusiasmo. Não o sinto porque não amo o Benfica da mesma forma. Preciso que o Benfica me volte amar, para sentir que o futebol me ama de novo como quando eu era pequenino.
E no dia 1 de Janeiro, às 0:00 e alguns segundos, quando estiver com 12 passas na mão,será fácil de adivinhar qual será um dos meus desejos. Vou pedir para voltar a ser... pequenino. Tudo depende de ti Benfica.